sexta-feira, 14 de março de 2014

A CRIANÇA TERCEIRIZADA

A criança terceirizada – parte 1

Mariana Sgarioni
Fonte: www.nmagazine.com.br
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“É uma falta de responsabilidade esperarmos que alguém faça as coisas por nós…”

John Lennon

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Antes de ser mãe do Benjamin, eu era mãe de dois cachorros. Para cumprir meu dever de ofício (e para não ter minha casa cheia de xixi e cocô), eu passeava com eles pelo menos uma vez ao dia. Conhecia todos os cachorros da região e seus respectivos donos. Sabia quem era o pai de quem – embora, verdade seja dita, eu só soubesse os nomes dos cachorros. Aquele ali é o dono do Bolota; o outro é o dono do Tobias; e o outro lá é o dono da Lolita. Mas, ainda sem nome, todos nos conhecíamos. Se eu encontrasse determinado cachorro com outra pessoa, ficava preocupada, pois não era o normal.
Pois bem. Hoje sou mãe de um ser humano e afirmo que boa parte dos outros pais eu nunca vi. Pense que isso acontece há 4 anos. Na pracinha, quem está lá é a babá. No pediatra, é a babá. Na escola, de novo, a babá. No shopping, é ela, a babá. Na festa de fim de semana, é vez da babá folguista. Não faço a mínima idéia da cara desses pais.
Outro dia estávamos na praia e encontramos uma amiguinha do Benjamin, cujos pais estavam para mim assim como o Saci Pererê e a Mula sem Cabeça estão para o imaginário popular – sabe-se que existem, mas ninguém nunca viu. Fomos falar com a menina, com a intimidade de velhos conhecidos que somos. E eis que me aparece um homem alto, bonito e bronzeado, sorrindo:
“Olá, muito prazer, sou o Beto, pai da Natália. Vocês são quem mesmo?”
Respondi que eu era a mãe do Benjamin, e que eu conhecia a Natália desde que ela tinha uns seis meses. Que ela já foi brincar lá em casa, já almoçou conosco, entre outras coisas. Qual foi minha surpresa quando ele não demonstrou nenhum constrangimento por sequer ter ouvido falar destas pessoas tão próximas da filha.
“Ah, sim, a babá deve conhecer vocês, né? Tem muita gente que não conhecemos, sabe como é, trabalhamos muito”.
Tem uma outra criança que mora aqui no nosso prédio, que já deve estar lá pelos seus sete anos, cujo pai também jamais apareceu em público. Fico intrigada por nunca ter encontrado esta criatura, mesmo morando no mesmo endereço. A mãe só vi duas vezes – e, nas duas, ela se justificou que o casal trabalha tanto que mal consegue conhecer os vizinhos.
Aqui em casa também trabalhamos demais. No entanto, sempre damos um jeito de participar ativamente da vida do nosso filho. Meu marido corre feito louco para sair do trabalho e atravessar a cidade a tempo de dar banho e contar uma história para Benjamin dormir. Eu viro noites em claro para poder estar com ele o dia inteiro. Todos os finais de semana estamos juntos. Por mais que tenhamos milhares de compromissos profissionais a cumprir, não consigo enfiar na cabeça como tem gente que não dá um jeito de estar presente na vida das pessoas que deveriam ser as mais importantes do mundo. Já vi professoras da escola escrevendo bilhetes gentis aos pais, pedindo que eles façam o favor de trocar a roupa dos filhos diariamente. Também já ouvi babás reclamarem que, quando elas chegam na segunda-feira de manhã, costumam pegar os bebês com os bumbuns assados, porque passaram o final de semana inteiro com as fraldas sujas – sob os cuidados dos pais. E já ouvi pediatras implorando para que certas mães levem as babás nas consultas, por serem estas as únicas a conhecerem os hábitos da criança.
Ninguém é obrigado a ter filhos. Vir com essa conversa fiada de que qualidade do tempo com a criança é melhor do que quantidade é papo furado de quem quer apaziguar a própria culpa (mande essa da qualidade do tempo para seu chefe e veja se cola. Pois é, com seu filho também não).
Para reflexão, deixo aqui um trecho do livro A Criança Terceirizada, do pediatra José Martins Filho:
“Em nossa sociedade já não se pode falar em patriarcado e matriarcado. O que temos realmente, salvo exceções interessantes, é a ausência de definições de papéis, de quem assume o que em relação à família ou aos filhos. As pessoas vivem com medo de ser criticadas, de assumir que tiveram a coragem de fazer uma opção pela família. O que se propõe? A volta da mulher à condição de dona de casa e rainha do lar? Claro que não, o que se propõe é a conscientização da paternidade e maternidade. Crianças choram a noite, nem sempre dormem bem, precisam de cuidados especiais, de limpeza, de banho, alimentação, ser educadas e acompanhadas até idade adulta. Será que todos os seres humanos precisam ser pais? Sejamos sinceros, nem todo mundo está disposto a arcar com esse ônus. Talvez seja melhor adiar um projeto de maternidade, e mesmo abrir mão dessa possibilidade, do que ter um filho ao qual não se pode dar atenção, carinho e, principalmente, presença constante.”

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