domingo, 29 de novembro de 2009

Timidez e preconceito


"A timidez, inesgotável origem de tantas infelicidades na vida prática, é a causa direta, mesmo única, de toda a riqueza interior" (Emil Cioran)

Não seria um exagero afirmarmos que existe entre nós uma espécie de "ditadura da extroversão", fenômeno gerado pelo fato de priorizarmos, a partir da educação infantil, valores materialistas que combinam com os valores da sociedade de consumo na qual estamos todos inseridos. Porém, este artigo não tem a intenção de aprofundar no sentido sociológico ou psicológico esta questão, e sim, possibilitar ao leitor que faça a sua reflexão a respeito do tema em análise.

Esta abordagem é baseada em uma realidade social: a existência de pessoas consideradas tímidas ou retraídas que geralmente procuram no atendimento psicoterapêutico, a razão de se sentirem diferentes ou à parte de um modelo comportamental vigente na sociedade, que foca na extroversão, o traço de personalidade ideal para que o indivíduo vença na vida...

No entanto, na intimidade dos consultórios, percebemos que essas pessoas catalogadas como "introvertidas" pela ótica de valores da produção e do lucro, possuem em sua maioria, potencialidade intelectual e criativa que permanece latente, ou seja, à espera de uma oportunidade de serem compreendidas e aceitas no "mundo dos extrovertidos". Na verdade são indivíduos estigmatizados - e sutilmente discriminados - por um modelo sócio-comportamental que exige da pessoa, a "marca da extroversão na testa" como condição básica para conseguir sucesso na vida...

Ledo engano! Há milhares de anos o homem persegue a fórmula do equilíbrio vital, que não está nos extremos, mas no meio de forças antagônicas que ao se aproximarem, se completam. Há séculos, as ricas culturas religiosas da India e da China dominam esse conhecimento, que somente a partir do Terceiro Milênio começa a difundir-se no mundo ocidental como nova diretriz para o processo de autoconhecimento do indivíduo.

O que seria da humanidade se existissem somente indivíduos extrovertidos ou introvertidos? Certamente haveria entre nós, seres dotados de inteligência, um desequilíbrio de proporções desconhecidas ou inimagináveis, que teria repercussão no âmbito social e alterado completamente os estudos sobre a natureza humana baseada em sua heterogeneidade comportamental.

O Dicionário da Lingua Portuguesa, define o termo "preconceito" como uma idéia preconceituosa, em geral sem fundamento; intolerância. O mesmo dicionario define o indivíduo "tímido" como aquele que tem temor, receio ou que apresenta dificuldade de relacionamento social. E completa com sinônimos: "acanhado, retraído, débil, frouxo".

Se considerarmos as suas características comportamentais, o tímido é um indivíduo "introvertido", ou seja, voltado para dentro de si ou para a própria vida interior, ou ainda, uma pessoa "introspectiva" que tem o hábito de examinar os próprios pensamentos e sentimentos.

Pelo mesmo ângulo de análise do comportamento humano, temos o antônimo de introversão, que é a pessoa considerada "extrovertida", de fácil relacionamento social, comunicativa, expansiva e que por isso, expressa mais seus pensamentos e sentimentos...

Se entre nós houvesse a predominância absoluta de um desses dois traços de personalidade individual humana, perderíamos com a inexistência de indivíduos extrovertidos, parte de nossa capacidade criativa aplicada nas grandes realizações e descobertas, assim como grande parte do entusiasmo que move o progresso material dos povos através de iniciativas pessoais nos âmbitos social, econômico, político e científico de uma maneira geral. E com a falta de indivíduos introvertidos, a humanidade perderia a sua capacidade de interiorização filosófica, científica - através da pesquisa e investigação -, e transcendental-religiosa, o que tornaria o homem mais dependente do imediatismo decorrente de seus pensamentos, emoções e sentimentos.

Portanto, a timidez - ou introversão - não leva consigo o "atestado" da impotência ou da doença, e sim, um traço de personalidade passível de mudança no sentido de que o indivíduo busque uma melhor conexão com a expansividade natural que a vida lhe oferece. O mesmo raciocínio aplica-se à extroversão como um traço de personalidade em que o extrovertido também deve buscar uma melhor conexão com a capacidade de interiorização que a vida costuma oferecer...

A partir do Terceiro Milênio, gradualmente, o comportamento humano começa a sofrer alterações, e o equilíbrio comportamental entre a capacidade criativa do extrovertido e a capacidade reflexiva do introvertido, torna-se referência para aqueles que desejam evoluir e mudar seus conceitos - e preconceitos - baseados em modelos sócio-culturais. Vejamos o exemplo dos Estados Unidos e da India, embora essa nação seja considerada emergente na avaliação do modelo capitalista. São realidades distintas, isto é, E.U.A a meca do capitalismo e de valores materialistas, e a India, referência mundial de religiosidade e de valores espiritualistas. E dessa forma, entre o oriente e o ocidente, teríamos vários exemplos a registrar...

Quando percebermos o preconceito gerado pela introjeção de valores materialistas que incidem sobre a distinção que fazemos entre uma pessoa considerada extrovertida, portanto aberta, expansiva e comunicativa, e outra, considerada introvertida, portanto "frouxa, retraída e débil", conforme sinônimos encontrados no dicionario, verificaremos, que através de imperceptíveis valores culturais internalizados, sutilmente discriminamos o traço tímido-introvertido de personalidade que deveria coexistir em harmonia com o tipo expansivo-extrovertido.

Informa-nos um dito popular "que na natureza humana os extremos se completam". É justamente esse olhar... essa percepção que precisamos aguçar para entendermos que introversão e extroversão completam-se no centro, isto é, no ponto de encontro de suas diferenças fundamentais. E que, independente do paradígma materialista que ofusca a nossa visão interdimensional, devemos sair em busca desse ponto de equilíbrio até atingirmos a completude e felicidade possível.

Em relação ao comportamento humano, talvez esse seja o nosso maior desafio do Terceiro Milênio: encontrar a unidade entre os polos energéticos que predominam na natureza humana. E a partir desse processo íntimo, cada indivíduo, seja ele reservado ou expansivo, caminhar ao encontro daquilo que lhe falta no atual momento de sua existência terrena, porque tudo é aprendizado e jamais aprenderemos se não sairmos em busca do que precisamos para transformar a si mesmo e ao mundo em que vivemos.


Flavio Bastos

Psicanalista Clínico e Interdimensional.
http://somostodosum.ig.com.br/clube/artigos.asp?id=18820

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Que se passa?



Que se passa?

(Iara Caierão)

O que se passa?
O que acontece contigo?

Tuas mãos não te obedecem.
Teus dedos rijos,
Não querem também obedecer!

Que se passa, menino,
Em tua cabeça,
Em teu coração?

Quanto padece teu corpo!
Quanto padece teu ser!
Ao saber não saber
Que és capaz de também aprender,
Do teu jeito,
Do teu modo,
Também ler e escrever!

Quem te disse que não podes,
Que não sabes,
Que não vais aprender?
O que se passa?
Que se passa contigo?
Não lembras as cores?
As letras, os números?
Nem mesmo teu nome
Consegues escrever?

No entanto,
Carregas um desejo gigante
De mais conhecer!
Perguntas,
Perguntas...
Tu fazes que não sabes
E sabe que sabe
Mas não podes dizer!

Se esconde,
Se mostra
Se veste e reveste
Se transveste
Para que não o descubram
Capaz de aprender!
Onde foi que deixaste
Tua vontade de ser?
Onde foi que enterraste
Teu "sonho-rojão"?
Teu desejo?

Desejo que é vida
Que é ar,
Que é pão.

Onde foi que te esqueceste,
Te perdeste,
Te encolheste,
Como quem quisesse
Da vida abrir mão?

Foi um veredito:
"não vais aprender"?
Ou quem sabe,
Cansou de lutar para mostrar
Que também tu podes
Do teu jeito aprender?


Suscitas-me perguntas,
Interrogações profundas,
Quase sem respostas...
Desperta-me dúvidas
Não sobre ti,
Mas sobre o meu saber,
Tão certo!
Tão igual!
Tão reconhecido, instituído, oficial!

Nas tuas limitações,
Eu vejo as minhas!
Nas tuas dificuldades,
Encontro o meu "não saber"!
És espelho que reflete
O meu "saber-não-saber".
Conhecimento sem corpo
E sem palpitação

Diante de ti,
conecto-me com meu desconhecido,
Com minha ignorância,
Com minha descoordenação motora,
Com meus dedos rijos,
Com minhas mãos duras e indomáveis,
Com minha pouca percepção,
Não de cores e formas,
Mas de mim mesma...

Que se passa menino?
Que acontece contigo?

Concordas com quem diz:
"Nada podes saber!?"
Pois nasceu roxo, fraquinho,
Pequeno e sem ar
Por isso não pode agora aprender...

Que grande mentira!
Disseram-te um dia!
Sonegando-te o direito
De descobrir e aprender!

Ninguém desaprende
O que um dia aprendeu,
Esconde ou rejeita,
Engana ou empana!
Mas tirar o que em vida
A experiência lhe deu,
Nem mágica!
Nem feitiço!
Consegue tirar!

Que se passa menino?
Que acontece contigo?

Bem sabes que sabes,
Bem sabes que do teu modo,
Do teu jeito,
Fazes tua escola e teu saber
Fazes-te aprendente e ensinante
Sujeito e objeto
do teu próprio saber.

A escola te rejeita,
Te enjeita
Pois não marchas
no rítmo que querem
Não respondes em refrão
Não cantas os hinos em coro
Não pedes a benção
Nem beijas a mão...

Pensar diferente tem preço!
Pensar diferente dói
e faz pagão!
Excluídos da escola
Mas não do saber!
Ser diferente do bando,
Da turma,
Não prova que não saiba aprender
Nem sabes, menino,
Que na tua limitação,
Na tua diferença,
No teu jeito de ser,
Aparentemente tão pobre,
Incapaz e desinteligente,
Tens sido pra mim,
A cada sessão,
Um mestre,
Um irmão,
Um ensinante,
Que nada garante,
Mas deixa-me ser...

Que se passa menino?
Que acontece contigo?

Alfabetiza-me na cartilha
Do teu "não-saber",
Para que eu possa descobrir
O sabor da leitura,
E o prazer da escrita
De um texto que ainda não li.


***

Este poema é dedicado ao "ser especial"

(portador de necessidades especiais)


quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Inversão de valores


Esse cidadão dizia "todos os meus heróis morreram de overdose". E era aplaudido.


Uma psicóloga que assistiu ao filme escreveu o seguinte texto:

'Fui ver o filme Cazuza há alguns dias e me deparei com uma coisa estarrecedora... As pessoas estão cultivando ídolos errados..
Como podemos cultivar um ídolo como Cazuza?
Concordo que suas letras são muito tocantes, mas reverenciar um marginal como ele, é, no mínimo, inadmissível.
Marginal, sim, pois Cazuza foi uma pessoa que viveu à margem da sociedade, pelo menos uma sociedade que tentamos construir (ao menos eu) com conceitos de certo e errado.
No filme, vi um rapaz mimado, filhinho de papai que nunca precisou trabalhar para conseguir nada, já tinha tudo nas mãos. A mãe vivia para satisfazer as suas vontades e loucuras. O pai preferiu se afastar das suas responsabilidades e deixou a vida correr solta. São esses pais que devemos ter como exemplo?
Cazuza só começou a gravar porque o pai era diretor de uma grande gravadora..
Existem vários talentos que não são revelados por falta de oportunidade ou por não terem algum conhecido importante.
Cazuza era um traficante, como sua mãe revela no livro, admitiu que ele trouxe drogas da Inglaterra, um verdadeiro criminoso. Concordo com o juiz Siro Darlan quando ele diz que a única diferença entre Cazuza e Fernandinho Beira-Mar é que um nasceu na zona sul e outro não.
Fiquei horrorizada com o culto que fizeram a esse rapaz, principalmente por minha filha adolescente ter visto o filme. Precisei conversar muito para que ela não começasse a pensar que usar drogas, participar de bacanais, beber até cair e outras coisas, fossem certas, já que foi isso que o filme mostrou.
Por que não são feitos filmes de pessoas realmente importantes que tenham algo de bom para essa juventude já tão transviada? Será que ser correto não dá Ibope, não rende bilheteria?
Como ensina o comercial da Fiat, precisamos rever nossos conceitos, só assim teremos um mundo melhor.
Devo lembrar aos pais que a morte de Cazuza foi consequência da educação errônea a que foi submetido. Será que Cazuza teria morrido do mesmo jeito se tivesse tido pais que dissesem NÃO quando necessário?
Lembrem-se, dizer NÃO é a prova mais difícil de amor .
Não deixem seus filhos à revelia para que não precisem se arrepender mais tarde. A principal função dos pais é educar.. Não se preocupem em ser 'amigo' de seus filhos.
Eduque-os e mais tarde eles verão que você foi à pessoa que mais os amou e foi, é, e sempre será, o seu melhor amigo, pois amigo não diz SIM sempre.'

Karla Christine - Psicóloga Clínica

Leu ? Concorda com a psicóloga?

domingo, 1 de novembro de 2009

Saberes e Mandarim


Recebi essa crônica de uma amiga e gostei muito. Não apenas por que fala em educação, cita Paulo Freire, Piaget... mas pela simplicidade e veracidade com que trata os diferentes saberes. Atualmente se fala tanto em educação inclusiva, mas será que já aprendemos a respeitar as diferenças e a colaborar para que as mesmas sejam amenizadas? Vale a reflexão!!!

Outro dia uma pessoa querendo mostrar o quanto ela era melhor do que eu me disse que aos dezesseis anos havia ido morar na Alemanha, que conhecia Paris, Grécia, Holanda, enfim boa parte da Europa e América do Norte. Essa pessoa também me mostrou o quanto sabia de Física, de Arte e muitos outros temas, ficou escandalizada por eu não saber onde nascia o Rio São Francisco. Ouvi por um bom tempo ela discorrer sobre o quanto sua vida havia sido rica e bem aproveitada.
Então resolvi fazer algumas perguntas a essa criatura: Você conhece Bagé, Uruguaiana, Cacequi, Rosário do Sul? Sabe onde nasce o Rio Vacacaí, Rio dos Sinos e o Rio Gravataí? Sabe quem escreveu Casa Grande e Senzala? Já leu a Pedagogia do Oprimido e sabe quem é o seu autor? Já ouviu falar de um movimento que ocorreu na educação chamado Escola Nova e sabe o que preconizava? Já ouviu falar de Jean Piaget e sabe o que são esquemas mentais segundo ele? Não, essa pessoa não sabia responder nenhuma dessas perguntas, e então eu disse: Pois é você sabe muitas coisas, mas não tudo, você conhece coisas que eu desconheço e eu sei de coisas que você desconhece, isso é que é bacana na convivência com o outro, a troca, pois um acaba enriquecendo o outro com os seus saberes. Confesso que meu argumento não adiantou muito pois essa pessoa continuou afirmando que o que ela sabia era muito mais importante, que os meus saberes não valiam nada. Desisti do diálogo, pois entendi que não era o momento e que infelizmente tem coisas que não é nessa passagem pela Terra que se aprende que são necessárias algumas existências ainda para começar a aprender.


Então lembrei de uma historinha que li uma vez sobre um menino que ao ser alfabetizado ficou encantado em descobrir as palavras, ler para ele estava sendo fantástico e então ao chegar em casa foi correndo para a cozinha contar para a cozinheira que trabalhava em sua casa o quanto ele era inteligente e mostrou um livro a ela, pedindo que lesse um texto, ela afirmou que não sabia ler. O menino então a humilhou-a, chamando-a de burra, como era possível que na sua idade não soubesse ler? Nesse instante adentrava na cozinha o pai do menino que o convidou para ir até a biblioteca, chegando lá pegou um livro e pediu que o menino lesse. O garoto ficou olhando para os rabiscos e disse que não entendia nada daquilo, então o pai argumentou: esse livro está escrito em Mandarim, você não deveria ter humilhado a cozinheira pois você não sabe tudo, ela tem saberes que você não tem. Ao longo de sua vida lembre-se que você não sabe ler Mandarim.

O menino cresceu, estudou, aprendeu muitas coisas, e sempre que se sentia inflado pelos seus saberes, começando a se achar muito bom, lembrava do seu velho pai alertando-o que ele não sabia ler Mandarim.


Acredito que essa é uma lição que precisamos aprender: valorizar o conhecimento do outro, por mais simples que ele possa parecer e usar o conhecimento que detemos para promover o bem, a paz, a concórdia e sempre que estivermos começando a nos achar muito bons que lembremos que ainda não sabemos ler Mandarim.

Jane Macedo – Porto Alegre/RS