O que teria acontecido? Davi, um menino de 10 anos, vai à escola com a arma de seu pai. Depois de atirar na professora, sai da sala e dispara contra sua cabeça. Não havia nada que particularmente chamasse atenção para Davi. Menino tranquilo. Cheio de amigos. Estava bem na escola. Seria bullying? “Foi uma brincadeira que não deu certo”, disse a diretora da escola.
Na mochila de Davi, um desenho em que ele aparecia armado, ao lado de um professor. Ali ele teria 16 anos. As crianças armam brincadeiras, criam histórias e desenham um tempo que ainda virá. Imitam em jogos aquilo que conhecem da vida dos adultos ensaiando o desejo de crescer e de se tornar também adultos.
Toda criança adora se divertir com armas de brinquedo. Na década de 1970, a agressividade na infância ainda podia ser simulada sem o fantasma social de que o jogo formaria adultos violentos.
Eu tinha um pequeno revólver com o punho bege. Era possível inserir um rolo vermelho de espoletas.As espoletas vinham em caixinhas de papelão com cinco unidades: cinco rolinhos novinhos em folha e o mundo inteiro aguardando os tiros. O barulho era tímido, não incomodava os vizinhos, mas era suficientemente alto para fazer acreditar que o inimigo tinha sido atingido. Lá pelos 11 anos, quando não achava mais graça nessas brincadeiras, uma amiga me convida para entrar no quarto de seu pai: “Vou te mostrar uma coisa...”. Abre a porta do guarda-roupas, levanta uma pilha de camisas e, na ponta dos pés, alcança o revólver do pai. Tomei um grande susto e saí correndo do quarto.
Quando uma criança brinca, cria um mundo próprio em que os elementos da realidade são dispostos conforme seu prazer. E esse mundo a criança leva muito a sério. Freud ensina que a antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real. As crianças desde muito cedo distinguem perfeitamente o que é brincadeira e o que é realidade.
Davi fez da brincadeira uma realidade.
*Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
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