segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SUPERANDO OBSTÁCULOS

Maravilhosa crônica de FABRICIO CARPINEJAR ( 17 de janeiro de 2012-Jornal ZH)

Retardado aos oito anos

Mãe é exagerada. Sempre romantiza a infância do filho. A minha, Maria Carpi, dizia que eu fui um milagre, que enfrentei sérias rejeições, que não conseguia ler e escrever, que a professora recomendou que desistisse de me alfabetizar e que me colocasse numa escola especial.


Eu permitia que contasse essa triste novela, dava os devidos descontos melodramáticos, entendia como licença poética.

Até que mexi na estante do escritório materno em busca do meu histórico escolar.

E achei um laudo, de 10 de julho de 1980, assinado
por famo so neurologista e endereçado para a fonoaudióloga Zulmira.

“O Fabrício tem tido progressos sensíveis, embora seja com retardo psicomotor, conforme o exame em anexo. A fala, melhorando, não atingiu ainda a maturidade de cinco anos. Existe ainda hipotonia importante. Os reflexos são simétricos. Todo o quadro neurológico deriva de disfunção cerebral.”

Caí para trás. O médico informou que eu era retardado, deficiente, não fazia jus à mentalidade de oito anos. Recomendou tratamento, remédios e isolamento, já que não acompanharia colegas da faixa etária.

Fico reconstituindo a dor dela ao abrir a carta e tentar decifrar a
quela letra ilegível, espinhosa, fria do diagnóstico. Aquela sentença de que seu menino loiro, de cabeça grande, olhos baixos e orelhas viradas não teria futuro, talvez nem presente.

Deve ter amassado o texto no bolso, relido sem parar num can
tinho do quintal, longe da curiosidade dos irmãos.

Mas não sentiu pena de mim, ou de si, foi tomada de coragem que é a confiança, da rapidez que é o aperto do coração. Rejeitou qualquer medicamento que consumasse a deficiência, qualquer internação que confirmasse o veredito.

Poderia ter sido considerada negligente na época, mas prefe
riu minha caligrafia imperfeita aos riscos definitivos do eletroencefalograma. Enfrentou a opinião de especialistas, não vendeu a alma a prazo.

Ela me manteve no convívio escolar, criou jogos para me divertir com as palavras e dedicou suas tardes a aperfeiçoar minha dicção (lembro que me fazia ler Dom Quixote, e minha boca andava apoiada no corrimão dos desenhos).

Em vez de culpar o destino, me amou mais.


Na vida, a gente somente depende de alguém que confie na gente, que não desista da gente. Uma âncora, um apoio, um ferrolho, um colo. Se
hoje sou escritor e escrevo aqui, existe uma única responsável: Maria Carpi, a Mariazinha de Guaporé, que transformou sua teimosia em esperança. E juro que não estou exagerando.

Superando obstáculos

Com a ajuda dos pais, crianças podem reverter distúrbios de desenvolvimento ou aprendizagem

(...) O escritor Fabrício Carpinejar conta como enfrentou sérias rejeições quando pequeno, que não conseguia ler e escrever, que a professora recomendou que desistissem de alfabetizá-lo e que o colocassem numa escola especial. O laudo de um neurologista recomendava tratamento, remédios e isolamento, já que ele não acompanharia colegas da faixa etária. Apesar dos diagnósticos, Carpinejar relata como, com o amor e a insistência de sua mãe, venceu os obstáculos e se tornou um escritor de sucesso. (...)

Qualquer criança em idade escolar está sujeita a não processar as informações que recebe da maneira esperada, podendo apresentar problemas de leitura, escrita e pronúncia das palavras, ou ao prestar atenção em sala de aula. Isso não significa, porém, que ela precise conviver negativamente com o rótulo de portadora de distúrbios de desenvolvimento ou de aprendizagem.

Especialistas na área da educação atualizados com os parâmetros teóricos mais modernos concordam, contudo, que receber uma informação como essa de forma prematura, e, muitas vezes, de maneira equivocada, pode causar estragos para o resto da vida. Novos paradigmas apontam para a ideia de que ninguém é menos inteligente por tirar nota baixa em matemática, ou por não conseguir decorar a tabela periódica: o próprio conceito de inteligência está em mutação.

Por isso, diante de uma situação em que um filho se encontra vulnerável, em vez de entrarem em pânico, perguntando-se o que fizeram de errado ou se ele é diferente dos outros, os pais devem entender que a solução pode passar por eles mesmos.

– A maneira como os pais vão lidar com um diagnóstico desse tipo está ligada à forma como eles representam seus filhos dentro de si, tornando-se decisivo na forma como a criança vai superar os problemas – define o psiquiatra Celso Gutfreind, ressaltando que, quando um pai acredita no filho acima de tudo e tem uma imagem positiva dele, transmite confiança, diminuindo o poder do diagnóstico, da “etiqueta” que colocaram na criança.

Um exemplo é a passagem da pré-escola para a primeira série. Nessa fase, algumas crianças estão mais preparadas do que outras para aprender a ler e a escrever. Ao se constatar dificuldades no aprendizado, deve-se prestar atenção para as mais simples alterações emocionais (como ansiedade e medo). A personalidade do aluno e situações mais complexas, como estar enfrentando problemas em casa – pais se separando, irmão nascendo ou bullying na escola – também devem ser considerados.

– Só porque uma pessoa não se encaixa em um padrão pré-determinado ou alguém é incapaz de compreendê-la não quer dizer que ela seja totalmente incapaz – justifica a psicóloga Lisiane Machado de Oliveira Menegotto, doutora em Psicologia do Desenvolvimento e coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Feevale.

( LÍVIA MEIMES )

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